quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A boca

Sempre comendo com a mão... Desta vez, pirão d’água, uns pedaços de carne seca e fome, fome das de roncar. Ontem, uns camarões nanicos, dali do rio defronte de casa, feitos na frigideira desgastada e com temperado pirão de dendê. Via-se comendo, devorando a solidão, ali no batente de madeira da porta do fundo. O olhar absorto e, a alguns metros, cantava o bem-te-vi. Amassava a carne seca junto com o pirão d’água e, por instantes, quase sentia o gosto. Agora apenas devorava, o ronco já adormecera. O paladar estava mais distante que o mais distante ponto do horizonte.

As roupas quaravam na cerca e impregnava-as o cheiro da fumaça do fogão a lenha. Prato de alumínio posto de lado, recolhia as roupas que não se veriam passadas a ferro. O velho batente da porta dos fundos... À mão um copo de vidro, desses de boteco, três dedos do café quente recém passado e uma sedinha, com um pouco de tabaco e saliva, fumegava a solidão assoprada como fumaça. A boca tinha mais o que dizer, mas, ocupada, estava calada. Agora uma sesta, ronco, sussurros balbuciados à companhia da rede gasta amarrada às árvores do pequeno quintal. Hora de prender as galinhas e, com elas, empoleirar a esperança para o dia seguinte.

Cinco horas da manhã, canta o galo e, da roça, chama a lida. Três dedos do café quente dormido e naco de pão duro com margarina. Orvalho, lágrimas da noite. Sedinha, com um pouco de tabaco e saliva, fumegava a solidão assoprada como fumaça e suprimida a golpes de enxada no roçado. E, sempre comendo com a mão... Desta vez, marmita, feijão, arroz, farinha, sardinha, um cheiro azedo de guardado, mas comida boa que quase tinha gosto. Sentidos distantes e mais uma sedinha, com um pouco de tabaco e saliva, fumegava. De repente, um grito: CHEGA! E ali estavam companheiros esquecidos.

8 comentários:

Lapa Levana disse...

Meu caro,

Tu escreveu isso que horas? Pela madrugada... texto rico em detalhes, bem visualizado... mensagem bem passada, a mesmice, o parar, o calar, o deixar... como se viver só fosse aquilo. Adorei o "CHEGA! pois aquilo já me incomodava...

Beijo! Sóóó Luzzz!

Anônimo disse...

Hum, me lembrou o interior, visualizei o pobre homem.
Já que a fome não lhe dá sabor o sno talvez lhe traga a paz.
Muito rico em detalhes, mais parecem fotos em preto e branco.

beijo

Anônimo disse...

Interessante personagem quase arrancado, devido a sua nostalgia, de “Vidas Secas”, nesse caso, uma vida secando.
Somente comendo com a mão... mas, acredito metaforicamente, que a boca já não queria mais comer (por isso a falta de gosto, de paladar, de vida).
O velho batente da porta dos fundos possivelmente guardava passado e despedida.
Finalmente a boca resolveu pronunciar uma despedida (o som da morte libertadora e a única passagem para o reencontrar de velhos amigos).
Até que ponto a vida é vida; e a morte é morte? Esse texto me fez pensar sobre isso.

Rodrigo Sestrem disse...

"A boca tinha mais o que dizer, mas, ocupada, estava calada."
E pronto...

Michelle Vieira Cintra disse...

O texo tem a textura da madrugada...
E vc, sempre descrevendo sensações, parece que me transporto para o seu ambiente literário.
Um beijo!

Anônimo disse...

Que lindo!
Acabei de me encontrar sentada no batente de madeira da porta do fundo.
Fantástico!

Um cheiro

Anônimo disse...

Já comecei com gosto de pirão de dendê...hummmmm...sabores e odores. É assim que se descortina esse texto. Uma festa de babete literária. E como todo bom texto marinado na emoção.
Bom o texto eu adorei, a construção tá perfeita, transito perfeito que nos deixa flutuando na imagem das palavras.
Porém... como te disse, a última frase, do Grito, deixou a expectativa de continuidade. Eu diria que vem mais por aí.
E talvez uma foto mais uibapuru combinasse com a emoção.

Vamo trabalhar poeta...

beijos
i.

Selene disse...

Por um momento pensei que vc estava relatando um momento vivido por vc. Depois me dei conta de que estava falando de uma experiencia vivida por vc, através dos olhos de outrem. Será?

Beijos,

Irmão/Poeta.