segunda-feira, 19 de julho de 2010

O Grito

Desde o momento da mentira, erigiram-se muros que garantiam haver, do outro lado, os tesouros preciosos. Foi incutido o valor da paciência, da resignação e os gritos passariam a ser sinônimos de fraqueza, sendo então recolhidos onde poucos ousaram ir. A comunicação com o mundo exterior estava perdida e com isto chegou a inquietação de um silêncio solitário, paciência passou a ser sinônimo de estagnação e a boa e velha vontade foi transmutada em automação. Extrapolada a paciência, fui buscar os velhos gritos que estavam escondidos, esquecidos, na caverna mais profunda. Desci escadas erodidas na argila mesclada com o limo das salivas, vozes sussurrantes desdenhavam e riam, vi as criaturas e seus olhos espreitavam. Topei em pedras, meu archote emanava a luz enfraquecida pela atmosfera rarefeita da profundeza úmida e deserta. Cheguei às rochas que margeavam o lago da morte, estavam dispostas em uma forma de altar, lá não havia barqueiro, tampouco eu precisava das três moedas. Contudo, era possível presenciar o vulto de fronte enegrecida, ele tinha suas mãos estendidas na direção de qualquer andarilho buscador. Primeiro ele mostrou o brilho da lâmina da foice, depois ele apontou o altar. Exitante e muito amedrontado, eu compreendi que ali deveria deitar e o fiz sem deixar de lado o archote. Foi então que, de um só golpe, a lâmina da foice desceu sobre meu braço, cortando-o ao meio e fazendo com que a luz caísse na escuridão gélida da água do lago. Neste momento ele me apareceu, através de uma dor insuportável, ecoando pelos corredores subterrâneos e por toda a caverna, o grito! Gritei forte, alto e, ainda assim, ninguém poderia escutar. Com tamanha dor e inquietação, debatia-me, contorcia-me, sem o braço, acabei por rolar para dentro do lago, ele era muito profundo, eu perdia muito sangue, não conseguia nadar e tampouco sabia a direção a ser tomada. Afundei, afogava aos poucos, sentia a alteração sensorial gerada pela falta de oxigenação, finalmente meu corpo tocou o fundo, fiquei ali por bom tempo. Morri? Inesperadamente percebi a visão clarear, clareava lenta e continuamente, trazendo imagens quiméricas que eu desconhecia. Bem aos poucos fui dando por mim, fui acordando, aos poucos estava voltando a perceber o ambiente ao meu redor, podia sentir que não havia perdido o braço, mas que agora ele estava mais forte. Quando consegui recobrar a consciência, e agora podia de fato chamá-la consciência, compreendi onde me encontrava. De onde eu estava podia ver, lá do outro lado, a margem do rio e o mesmo altar onde eu teria me sacrificado, me entregado e confiado ao vulto antigo, podia ver que era ainda um lugar escuro impregnado do desconhecido. O lugar no qual agora me encontrava era claro e leve, atrás de mim pude perceber uma saída através da qual um céu azul aparecia. Eu estava calmo, tranquilo, quando então reapareceu o vulto no meio do lago, ele veio em minha direção, ainda segurava a foice e me fazia ver o brilho da lâmina que, imediatamente, me fez reviver algo da dor anteriormente sentida. Sua intenção? Me fazer lembrar. Ele sorriu, deu as costas, assim pude presenciar sua outra face, era uma fronte de luz e serenidade, em uma das mãos empunhava, no lugar da foice, um caduceu. Entendi que agora eu podia seguir através da saída, foi o que eu fiz. Quando saí, o muro ainda estava erguido, contudo agora eu me via do outro lado, do tão sonhado lado de fora, lado dos tesouros, notei que havia muito menos pessoas ali e que essas pessoas transitavam através do muro, podendo entrar e sair livremente. Segui em direção a uma dessas pessoas e perguntei como eu nunca havia percebido esses movimentos de entrada e saída quando estava do lado de dentro. Ele, um menino de aproximadamente treze anos, respondeu: você simplesmente não sabia para onde olhar.

6 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pela excitante leitura que o seu texto nos provoca. A primeira impressão, entendi que você estava a procura de si mesmo, e pra isso, precisou se isolar um pouco do mundo, adentrando fundo na caverna do teu ser. Nessa busca, você conheceu a dor, o medo, mas que enfrentando-os, te trouxe libertação, paz, serenidade e leveza. Seria uma descoberta espiritual, arrisco, da qual você se alimenta hoje com destreza. Fico feliz por entender assim.Beijocas, e mais uma vez, parabéns! =D Carol Carambola.

Frida Cores disse...

às vezes nos escondemos nas partes sombrias de nós mesmos... isso nós faz cegos... não conseguimos ter dimensão do todo em sua realidade, nem as opções que nos são mostradas...

il.li disse...

Migo lindo...=)
agora tb tenho um blog...bleee..rs

http://embriaguezdarapariga.blogspot.com/

bjs
saudades Zebim

ANTINOMIAS DE AZAZEL disse...

Como posso comentar aquilo que não pode ser transliterado pelo signo?

E digerir essa experiência não tem sido fácil, me envolvi tanto com o que você descreve que acabei sentindo cada passo desse processo, cada angustia e dor deste momento da perca; a morte abrindo sua boca profunda e nela mergulhado, o Guia, o Mestre, que te conduz nessa viagem ao a reino de Elphame;

Então vislumbrei a mesma viagem de meu Pai Caim, e você (e eu por tabela) vivenciando no aqui e agora da consciência, e assim não temer a morte no corpo..

Parabéns, pelo processo, aí está a iniciação real e válida...
Só posso dizer que vejo como sendo mais um passo dentro dos Reinos da Hipnogogia, você não escreve, você transmite em palavras o Sonhar, Dormindo, Acordado...

Victor Requião disse...

É na profundidade do abismo que esquecemos de nós mesmos e olharmos pra cima, vendo o antes não visto. É nessa realidade "conhecida", só depois da total entrega que brota a nossa força e a nossa Vontade de nos ligarmos a nossa fonte, nela somos solitários. Não seria anti-natural se fosse o contrário?

Enfim, é na bolha, irmão, que cruzamos, e é nessa ida-e-vinda que fazemos a consciência ganhar mais forma e mais fluidez para nos elevarmos além dela, em outras bolhas, mais sutís...

Rosane disse...

Excelente texto!

Me lembrou A Caverna, de Platão, a percepção turva da realidade e um estado que fica entre a vigília e o sono... parece, inclusive, que estamos o tempo inteiro neste estado. As imagens são bonitas... altamente criativas e impactantes. Adorei!
beijo
Rose